Áuria de Jesus, Médica e Pesquisadora CISM
O artigo recentemente publicado pela revista Influenza and Other Respiratory Viruses com o título “Exposição elevada ao SARS- OCoV-2 na zona rural do sul de Moçambique após quatro vagas de COVID-19: Inquéritos Seroepidemiológicos de Base Comunitária” da equipa coordenada por Áuria de Jesus tem origem no projecto MozCOVID que tinha como objectivo compreender a curva epidémica e a história natural do Síndrome Respiratória Aguda Grave do Coronavírus 2 (SARS-CoV-2) no distrito de Manhiça, através de uma série de indicadores epidemiológicos obtidos ao nível da unidade sanitária, de modo a fornecer recomendações baseadas em evidências para a gestão e mitigação da epidemia de COVID-19.
Este é o primeiro artigo publicado da autoria da Médica e Pesquisadora do Centro de Investigação em Saúde da Manhiça (CISM), Áuria de Jesus, que enquanto coordenadora do estudo MozCOVID executado entre Maio de 2021 e Junho de 2022, usou os dados existentes para a escrita daquele que é considerado seu primeiro “filho científico”.
O estudo estava dividido em quatro partes, nomeadamente a (1) vigilância hospitalar (testagem passiva de pacientes que se dirigirem ao Hospital Distrital da Manhiça com sintomatologia sugestiva de COVID-19 com zaragatoas nasofaríngeas- métodos para a coleta de amostras a partir da parte detrás do nariz); (2) Seguimento de casos positivos e seus contactos (participantes com resultado positivo de SARS-CoV-2 testados ao domicílio junto com seus contactos); (3) história natural de COVID-19 (seguimento de 100 participantes positivos sintomáticos e assintomáticos durante 6 meses); e (4) Estudo de corte transversal ou simplesmente Cross (que consiste na coleta de dados em um determinado momento no tempo para investigar a presença de um comportamento ou característica em uma população).
“A COVID-19, como qualquer outra pandemia, surgiu repentinamente e precisávamos de ter dados de forma rápida sobre esta nova doença para partilhar com a comunidade da Manhiça e o público no geral, de forma a contribuir para novas medidas de prevenção e tratamento para a mitigação da mesma no nosso distrito e país. Sendo um estudo complexo, acordamos um certo número de artigos que deviam ser partilhados de imediato, dos quais um deles seria sobre a seroprevalência do SARS-CoV-2 na Manhiça. Realizamos quatro inquéritos seroepidemiológicos de base comunitária separados por 3 meses entre Maio de 2021 e Junho de 2022 para avaliar a prevalência de anticorpos SARS-CoV-2. Uma amostra estratificada por idade (0-19, 20-39, 40-59 e < 60 anos) de 4810 indivíduos foi selecionada aleatoriamente do banco de dados de vigilância demográfica. As zaragatoas nasofaríngeas de uma subamostra de 2209 participantes foram também avaliadas quanto à infecção activa por RT-qPCR. Cada vez que aparecia uma nova onda ou variante da COVID-19, procurávamo entender em que medida a mesma afectou a comunidade de Manhiça. Felizmente, conseguimos realizar todos os quatro Estudos de corte transversal, e apresentar um único artigo”, disse Áuria.
Segundo a autora, o estudo teve uma boa aceitabilidade a nível da população, pois para a avaliação da seroprevalência colheram-se amostras de sangue, de apenas 500 microlitros, não tendo havido necessidade de colher amostras com zaragatoas nasofaríngeas, procedimento que já vinha sendo reclamada pela comunidade. E o apoio de todos os membros da equipa, e de diferentes departamentos, foi indispensável para a concretização de todas as fases do estudo.
Com a implementação do MozCOVID, esperava-se medir o impacto imediato da COVID na saúde pública a nível nacional, regional e global, melhorando o maneio, a prevençãõ e o controlo da epidemia de COVID-19 em Moçambique e em outros países da África Subsaariana, fornecendo recomendações baseadas em evidências que podem ser traduzidas em política de saúde.
Foram realizadas várias reuniões de avaliação da informação, seminários e retiros onde ficávamos concentrados para produzir os artigos
Olhando para os desafios no terreno, de acordo o com a pesquisadora, “o primeiro tem a ver com o facto de ser um estudo implementado durante a pandemia, uma época em que se recomendava pouco contacto físico. Nós, porém conseguimos superar, pois estávamos munidos de equipamentos de proteção individual e oferecíamos máscaras aos nossos participantes de forma a protege a todos que estivessem nesta interação da melhor forma possível. O segundo desafio foi de garantir informação de qualidade, pois, novos CROSSES iam surgindo a medida que surgia uma nova vaga de COVID-19. Os Estudos de corte transversal tinham um tempo determinado para realização, sendo necessário recrutar 1.200 pessoas para cada CROSS. Mesmo com uma equipa grande e esforçada, tínhamos que ter uma boa organização e coordenação. Graças a este trabalho de equipa aprendi muita coisa, inclusive na escrita do próprio artigo, processo que não foi fácil pois não tinha ainda nenhuma experiência. Ouvia comentários sobre o que é escrever um artigo, mas quando chegou a minha vez de o fazer, foi completamente diferente de tudo que tinha ouvido. Graças à ajuda dos meus colegas, co-autores (Rita Ernesto, Arsénia J Massinga, Felizarda Nhacolo, Khátia Munguambe, Alcido Timana, Arsénio Nhacolo, Augusto Messa, Sérgio Massora, Valdemiro Escola, Sónia Enosse, Rufino Gunjamo, Carlos Funzamo, Jason M Mwenda, Joseph Okeibunor, Alberto García-Basteiro, Caterina Guinovart, Alfredo Mayor e Inácio Mandomando), foi possível amadurecer as várias ideias e trazer este artigo ao mundo. Foram realizadas várias reuniões de avaliação da informação, seminários e retiros onde ficávamos concentrados para produzir os artigos. Portanto, escrever um artigo exige muita concentração, muitas horas de leitura, dedicação individual e apoio dos co-autores”.
Áuria de Jesus, diz ter aprendido muitas lições do Investigador Principal, Dr. Inácio Madomando, responsável da área de pesquisa de Doenças Bacterianas, Virais e outras Tropicais Negligenciadas do CISM, uma delas é que a ciência não se faz sozinha.
“Ser médica coordenadora de um estudo tão grande como o MozCOVID foi uma honra, mas exigiu muito trabalho e dedicação. Além disso, a escrita do artigo foi uma experiência muito boa e espero repetir muitas vezes. Apenas desejávamos que o artigo estivesse com qualidade suficiente e com informação correcta para todos de modo a cumprir os objectivos do estudo”, enfatizou.
Como constatação do estudo da seroprevalência, após se ter ido quatro vezes à comunidade e colher amostras de sangue, a equipa apurou que as diversas variantes da COVID influenciaram nos resultados. A seroprevalência de SARS-CoV- 2 aumentou de 27,6% no primeiro inquérito (Maio de 2021) para 63,6%, 91,2% e 91,1% no segundo (Outubro de 2021), terceiro (Janeiro de 2022) e quarto (Maio de 2022) inquéritos, respectivamente. A seroprevalência em indivíduos < 18 anos, que não eram elegíveis para vacinação, aumentou de 23,1% no primeiro inquérito para 87,1% no quarto. A prevalência de infecção activa foi inferior a 10,1% em todos os inquéritos“. Foi verificado uma elevada seroprevalência ao SARS-CoV-2 na população em estudo, incluindo indivíduos não elegíveis para vacinação na altura, particularmente após a circulação da variante Delta, altamente transmissível.
Estes dados foram importantes para informar a tomada de decisão sobre as estratégias de vacinação no contexto de abrandamento da pandemia em Moçambique”, adiantou Áuria de Jesus, concluindo que as principais ilações que teve, mesmo com poucos anos de experiência no CISM, foi a possibilidade de, com muita dedicação, escrever um artigo como primeira autora.
Jornal Noticias, 19.07.2024
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