Introdução no Programa Alargado de Vacinação da Vacina contro o Cancro do Colo do Útero em Moçambique
O cancro é um problema de saúde pública em todo o mundo, responsável por altas taxas de morbidade e mortalidade e sua gravidade é registada nos países de baixa e média renda. De acordo com o Plano Nacional de Controlo do Cancro (2019-2029), estima-se que em 2040 hajam 51.8 mil novos casos de cancro. Segundo dados do Registo do Cancro na cidade de Maputo, o cancro do colo do útero constitui um dos cinco tipos de cancro mais frequentes nos últimos 20 anos, sendo responsável por 18% de todos casos de cancro registados, seguido pelo sarcoma de Kaposi (11%), e pelos cancros da próstata (7%), fígado (7%) e mama (6%).
A falta de consciencialização pública sobre os riscos e as medidas de prevenção, sinais e sintomas associados ao cancro do colo do útero, a busca deficitária de cuidados de saúde, a capacidade dos profissionais de saúde para detectar atempadamente os casos de cancro e a falta de infraestruturas de saúde, particularmente fora dos grandes centros urbanos, são apontados pelo MISAU como factores que contribuem para a elevada prevalência e altas taxas de mortalidade associadas ao cancro em Moçambique.
No contexto do cancro do colo do útero em Moçambique, o Centro de Investigação em Saúde de Manhiça (CISM), através da Área Científica de Saúde Materna e Reprodutiva e a Unidade de Pesquisa Social (actualmente Área Científica de Estudos de População) esteve envolvida em estudos epidemiológicos, de aceitabilidade e cobertura da vacina, de avaliação pós intervenção (incluindo económica) e actividades ancilares tais como a revisão a estratégia nacional de controlo do cancro e a elaboração de um curriculum de formação, em preparação para a introdução da vacina, com vista a apoiar e recomendar ao MISAU e a comunidade científica no geral sobre as melhores directrizes para a administração à escala nacional, da vacina contra o Papiloma Vírus Humano (HPV), responsável pelo cancro do colo do útero.
Entre 2001 e 2007, vários estudos realizados no distrito de Manhiça e cidade de Maputo, que contaram com a participação de investigadores do CISM, revelaram que a prevalência do HPV é elevada (75,9% em mulheres com o colo do útero normal e 100% entre mulheres com lesões cancerosas). Foi revelado também que a adopção da então existente vacina específica para as variantes HPV16 e HPV18 poderia evitar entre 72% e 81% dos casos de cancro do colo do útero em países Africanos de alto risco, como Moçambique, onde o peso desta doença é elevado e os programas de rastreio não são abrangentes. O cenário acima descrito no país, preocupou as autoridades de saúde e marcou a corrida em busca de uma solução para fazer face a este problema de saúde pública.
Em 2012, Moçambique iniciou a candidatura ao financiamento da GAVI Alliance (The Vacinne aliance), uma iniciativa da Fundação Bill e Melinda Gates e em 2013, o MISAU, através do Programa Alargado de Vacinação (PAV) em conjunto com o Ministério da Educação (MINED), com apoio técnico do CISM, da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Instituto de Saúde Global de Barcelona (ISGLOBAL), do Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), da Village Reach e da Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC) submeteram a proposta financeira que visava realizar o Programa de Demonstração de Vacinação contra Cancro do Colo do Útero (HPV-DEMO) nos distritos de Manhiça, Vila de Manica e Mocímboa da Praia por dois anos.
“Ainda em 2013, o CISM realizou os primeiros estudos de aceitabilidade da vacina nos distritos de Manhiça e KaMavota. Estes estudos, informaram a candidatura ao financiamento da GAVI para a realização do HPV-DEMO e foram financiados pelo Ajuntamento de Barcelona, e mais tarde, já no programa de demonstração, fez-se a réplica destes estudos em Mocímboa da Praia (com financiamento da Fundação Aga Khan)”, afirma a Dra. Khátia Munguambe, uma das investigadoras principais do CISM envolvida nos estudos e actividades que culminaram com o contributo do CISM.
No âmbito do HPV-DEMO, foi incumbida ao CISM a responsabilidade de realizar a avaliação da intervenção de demonstração, com destaque para:
1. Vigilância da doença e monitoria dos eventos adversos pós-vacinais (AEFI): apesar de não se ter estabelecido uma plataforma de vigilância epidemiológica da vacina (porque a avaliação do impacto epidemiológico da vacina apenas é possível a longo prazo, e o período de vigência do programa era insuficiente), foi elaborado, pelo CISM, um protocolo para monitorar os eventos adversos pós-vacinação (AEFI) e foram também elaboradas ferramentas (formulários AEFI e circuito de notificação) para distribuição e uso em todas escolas e unidades sanitárias contempladas pelo programa de demonstração. Esta vigilância revelou que a vacina era segura não tendo sido reportado nenhum evento adverso grave durante a demonstração;
2. Avaliação pós-introdução da abordagem de vacinação (PIE): esta avaliação decorreu a nível do distrito de Manhiça entre Outubro e Novembro de 2014 e a nível dos três distritos envolvidos no programa de demonstração entre Janeiro e Fevereiro de 2015. Durante o primeiro ciclo de vacinação (2014), o CISM incorporou uma abordagem inovadora de observação directa das actividades, denominada “Observação Estruturada”, reforçando assim os resultados do PIE. Este estudo permitiu demonstrar que a estratégia de administração
da vacina nas escolas seria complexa e tomou-se a decisão de administrar nas Unidades Sanitárias;
3. Avaliação económica: Entre Abril e Junho de 2015, realizou-se a avaliação dos custos de vacinar meninas de 10 anos contra o referido cancro nas escolas (sendo que a administração da vacina usando a rede escolar foi a principal abordagem optada pelo MISAU durante o programa de demonstração);
4. Inquérito cobertura vacinal na comunidade (HPV-cobertura): entre 2015 e 2016, o CISM realizou dois inquéritos de cobertura vacinal no distrito de Manhiça. Estes inquéritos culminaram em análises estatísticas dos factores determinantes da vacinação e a comparação dos dados de cobertura e de abrangência da informação entre o primeiro e segundo ciclos de vacinação. Estes estudos revelaram altas taxas de cobertura vacinal;
5. Avaliação e testagem da viabilidade de integrar a vacinação de HPV nos programas de saúde do adolescente e saúde escolar: para esta avaliação o CISM, baseou-se numa abordagem que consistiu em usar os dados gerados nos dois ciclos de vacinação, e partilhá-los num painel multissectorial/institucional que discutiu as fraquezas e fortalezas da integração da vacina nos programas existentes de saúde escolar e do adolescente ao mesmo tempo que reflectiu sobre as oportunidades e ameaças encaradas pela integração da vacinação contra HPV nas actividades de rotina destes programas.
6. Elaboração de curriculum e materiais de formação em HPV e vacinação contra HPV (HPV-Formação): esta componente, que contou com o financiamento da Fundação “laCaixa”, consistiu em uma avaliação rápida dos curricula de uma amostra de instituições de formação de profissionais de saúde a nível médio e superior, que identificou as lacunas, necessidades e prontidão em relação a formação em matérias de HPV, cancro do colo do útero e vacinação específica para este problema de saúde. Esta actividade produziu um curriculum detalhado que incorporou os respectivos planos analíticos, manuais para os docentes e para os formandos e materiais para avaliação. O pacote foi pilotado na Manhiça e em Mocímboa da Praia e os materiais finais submetidos a Direcção Nacional de Saúde Pública para aprovação e uso.
7. Revisão da estratégia nacional de controlo do cancro: O CISM participou activamente na revisão do conteúdo da estratégia nacional de controlo do cancro, que evoluiu para Plano Nacional de Controlo do Cancro e subsequentemente na actualização do Plano Estratégico Nacional de Controlo de Doenças não Transmissíveis, de modo a incorporar aspectos relacionados com plano de introdução da vacinação contra o cancro do colo do útero.
Portanto, segundo Dra. Esperança Sevene, investigadora do CISM“a participação do CISM nas fases de pré, durante e pós implementação do programa de demonstração da vacina foram determinantes para que o governo e os parceiros tomassem a decisão de introduzir esta vacina no calendário nacional de vacinação. Referiu ainda que testemunhar hoje a introdução da vacina é motivo de muito orgulho não só para o CISM como também, para todos investigadores e instituições nacionais e internacionais que estiveram envolvidos em todo este processo”.
Não obstante todo trabalho precioso feito até a introdução da vacina no PAV em 2021 , “ainda não é o fim, na verdade acreditamos que somos mais uma vez chamados para que junto com o MISAU e os parceiros, possamos contribuir para que seja alcançado o maior número possível de meninas elegíveis para atingir a cobertura vacinal desejada, uma vez a toma da vacina, nas doses recomendadas para que as meninas cresçam livres do cancro do colo do útero”, defende a Dra. Neusa Torres, Responsável da Área de Estudos de População do CISM.
De salientar que, de acordo com a OMS, o grupo-alvo na maioria dos países que recomendam a vacinação contra o cancro do colo do útero, é constituído por meninas adolescentes, com idades entre 9 e 14 anos. Contudo, em Moçambique numa primeira fase o programa terá como grupo alvo meninas com 9 anos de idade. A vacinação completa para este grupo alvo consiste em duas doses administrada com um intervalo de 6 meses entre as doses.
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